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segunda-feira, 30 de junho de 2008

Vou te mostrar com quantas cordas se faz um berimbau


Não reproduzirei aqui as declarações do professor doutor senhor Antônio Dantas, coordenador do curso de medicina da Universidade Federal da Bahia, em que “explica” o baixo desempenho dos seus alunos no Enade. Outros coordenadores, e mesmo reitores, lançaram mão de argumentos igualmente inconsistentes, mas pelo menos mais pacíficos.

A Faculdade de Medicina, fundada quando da passagem da corte portuguesa pela Bahia, comemorou, agora em fevereiro, seu Bicentenário. Ou a ciência médica não ajuda em nada a melhoria da saúde de uma população, ou os baianos - que provavelmente constituem a maioria de seus alunos - formados pela FAMEB nunca exerceram sua profissão. Paradoxo por paradoxo, o estado da Bahia estaria deserto hoje em dia, por inegável que é a responsabilidade de uma política eficiente de saúde na superação, ano após ano, da taxa de expectativa de vida; nesse caso, ainda que a Bahia esteja no 21º lugar no ranking da expectativa nacional de vida, foi um dos estados que mais avançaram no acumulado dos últimos 26 anos - segundo o IBGE - passando de 50,71 para 71,72 anos; muito perto da média nacional.

É interessante como os administradores, principalmente os públicos, quando pegos em sua incúria não pestanejam em jogar na defensiva. Nunca assumem suas culpas; elas são sempre de outrem. Neste caso, é dos estudantes de medicina do último ano de graduação, segundo o senhor Dantas. Talvez, por ele, nem se fizesse necessária a avaliação do Enade. Pelo que disse, era sabedor de que o curso, sob sua coordenação, era insuficiente para formar médicos; ou, como declarou, os alunos eram incompetentes para estudar medicina na sua faculdade. Isto, entretanto não me parece uma coisa só. Estamos falando de acadêmicos do último período, que passaram anos estudando, sendo avaliados e aprovados... Este assunto é de extremo interesse público, pois outras faculdades também foram “reprovadas” na avaliação do MEC. Pelo andar da carruagem, faz tempo que os brasileiros estão nas mãos de profissionais que cursam faculdades julgadas insuficientes por seu órgão regulador.

Não sei em qual dos grupos o meu caro leitor postula: no dos que acreditam que a escola faz o aluno, ou entre os crentes de que é o aluno quem faz a escola. Em ambos os casos, acho que está certo. Mas podemos resumir assim: uma escola ruim não pode dar a um bom aluno tudo de que ele necessita para ser um bom profissional; uma boa escola pode transformar um aluno não muito brilhante em um profissional competente. De todo modo, fico com um outro axioma: “Quem tem fama, deita na cama”.

Mas, para além dessa questão, o fulcro de nossa conversa é o preconceito exarado pelo coordenador que citei já mais de uma vez. Fico me lembrando de tantos baianos ilustres, em todas as áreas do conhecimento e em todos os tempos, que povoam o altar dos famosos do Brasil. Num exercício de pesquisa, recolhi a fala de alguns que serve de respostas baianas ao julgamento escarninho do coordenador:

Rui Barbosa em discurso na Faculdade de Direito de São Paulo, 1920: Não imiteis os que, em se lhes oferecendo o mais leve pretexto, a si mesmos põem suspeições rebuscadas, para esquivar responsabilidades, que seria do seu dever arrostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos.

[...] para dizer ao povo da Bahia que em nossas relações sou o único devedor. Do saber do povo me alimentei e se alguma coisa construí, ao povo o devo. Minha obra não é mais do que pobre recriação de sua grandeza. Jorge Amado em discurso de posse na ABL.

João Ubaldo em “Brasil, um país dos mesmos”: É meio chato o sujeito nascido em meados do século passado descobrir, numa série aparentemente infinita de pequenos episódios deprimentes, que passou a vida sendo enrolado e acreditando em bobagens.

Castro Alves, em “Improviso”, gritaria à mocidade acadêmica:



Moços! A inépcia nos chamou de estúpidos!

Moços! O crime nos cobriu de sangue!

Vós os luzeiros do país, erguei-vos!

Perante a infâmia ninguém fica exangue

Protesto santo se levanta agora,

De mim, de vós, da multidão, do povo;

Somos da classe da justiça e brio,

Não há mais classe ante esse crime novo!

Sim! mesmo em face, da nação, da pátria,

Nós nos erguemos com soberba fé!

A lei sustenta o popular direito,

Nós sustentamos o direito em pé!

Discurso de Edith Mendes Gama e Abreu pronunciado no 2º Congresso Feminista, em 1931: É mister do feminismo, senhores, elaborar essa reforma de costumes e de leis derrubando os ilogismos do preconceito, guiando com a justiça e o amor a partilha dos direitos entre a criaturas, para que as gerações do porvir não conheçam esses contrastes violentíssimos de miséria e opulência, de domínio e sujeição, de gozo e sofrimento, de luz e treva do espírito.

Adonias Filho em seu discurso de posse na ABL: E, definindo-me - quando os reencontro à sombra da definição -, já agora como escritor do meu tempo, não posso evitar o que exigem no fundo mesmo da sua obra. Exigem a luta contra a censura ideológica, contra o comando do partido único nas artes e nas ciências, contra o bloqueio cultural - que tentei estudar em um dos meus livros - ainda hoje oprimindo povos e humilhando o homem.

Zélia Gattai - baiana por adoção, diria: _Senti-me invadida por um sentimento de revolta, veio-me à cabeça uma frase anarquista... Não vacilei, levantei-me da mesa, encostei-me à porta e larguei o verbo, com a mesma entonação com que havia aprendido, com o mesmo dedo em riste que ele empregava:

_“Quando lá fórza e la ragion corístrasta, vince la fórza. La ragion non basta!” (Anarquistas, graças a Deus).

É uma pena que Machado de Assis não tenha nascido baiano, se o tivesse poderia responder ao coordenador com um aviso ao leitor: A minha idéia, depois de tantas cabriolas, constituíra-se idéia fixa. Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho.

À exceção do de João Ubaldo, todos esses discursos foram emprestados de defuntos. Fazem idéia de como essa trupe está lá do outro lado proferindo impropérios? Pois como disse Brás Cubas: O olhar da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados. Por isso, valho-me de um discurso de vivo que bem expressaria a sentença desses mortos se ainda tivessem o viço e a infeliz oportunidade de ouvir aquela história de berimbau com mais de uma corda:

Me larga, não enche
Você não entende nada e eu não vou te fazer entender
Me encara de frente:
É que você nunca quis ver, não vai querer, não quer ver
Meu lado, meu jeito
O que eu herdei de minha gente e nunca posso perder
Me larga, não enche
Me deixa viver, me deixa viver, me deixa viver, me deixa viver

Cuidado, ô xente!
Está no meu querer poder fazer você desabar
Do salto, nem tente
Manter as coisas como estão porque não dá, não vai dar
(...)
Eu vou
Clarificar a minha voz
Gritando: nada mais de nós!
Mando meu bando anunciar:
Vou me livrar de você (Caetano Veloso em “Não Enche”)

Estou me segurando por aqui a fim de não viajar até a gostosa Salvador pra dizer uns desaforos in loco.

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