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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

É o batidão


Hoje acordei meio proverbial, porque há um tempo em que ser cartesiano demais também cansa. Já estava disposto a me deixar banhar nas águas do senso comum, quando uma estrela cadente veio cair exatamente na minha caixa de e-mail. Uma amiga professora mandou-me o texto do Projeto de Lei 1.671/08 aprovado na Alerj em 1º de setembro, que tratou de transformar o Funk em movimento cultural e musical de caráter popular. Não tenho preconceito musical; mas, preferência. E nisso sou bastante seletivo. Pus-me a ler o texto, pois é melhor ler qualquer coisa do que ser cego. Também porque não aprovo o comportamento de pessoas dadas a assinar sem ler ou que gostam de repetir o “não vi e não gostei”. Outrossim, sempre quero ver as coisas com meus próprios olhos. Pasmei.

A minha octogenária mãe, que já citei um milhão de vezes, encerraria a polêmica com um “gosto não se discute” ou “uns gostam dos olhos; outros, da remela”. Entretanto eu, que não sou filho de peixe, preciso ir de vez em quando à tona respirar o oxigênio da ciência e consertar a vista na luz do conhecimento, diria que gosto é igual à razão: uns têm; outros não. Aliás, houve um tempo que possuía a crença na indiscutibilidade do paladar. Então aprendi a degustar as comidas com os talheres mais convenientes e a ingerir as bebidas nos vasos mais adequados; percebi como isto faz diferença no sabor das coisas. Os meus críticos dirão que é muito mais natural tomar água numa cuia, ou então, que é tudo igual. Eu lhes sugiro que a partir de hoje só tomem líquidos na concha das mãos, e parem de andar vestidos por aí. Além do mais, quem aqui está querendo ser NATURAL? Não abro mão é de ser CULTURAL. Por isso, irei defender sempre que sensibilidade pode ser aprendida. Daí, o gosto musical, a preferência sexual, a criatividade, a apreciação pelo paladar, o olhar, o tato, o olfato, a audição... tudo pode ser educado, segundo a cultura, para o prazer.

Como desgraça pouca é bobagem, querem me fazer crer que o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica do Estado do Rio é um dos piores do Brasil, porque faltava colocar o Funk nos currículos escolares. Já que é de menino que se torce o pepino, a Secretária de Educação, Teresa Porto, quer, parece-me, que os professores se tornem MC’s e DJ’s disso e daquilo. Já imaginou o professor de Literatura sensibilizando seus alunos para a letra, vejamos, de “Nóis Nasceu Pra Ser Patrão” dos escritores Mc’s Pikeno e Menor:

Nóis Nasceu Pra Ser Patrão(2x)

Varios Carros, Varias Moto, No Pescoço Varias Prata De Whisky e Red Bull e No Baile Funk só As Gata.

É O Menor e o DJ Gá Mlk Top é Nóis Então, Gasta mesmo sem miséria nóis nasceu pra ser patrão.

Nóis Nasceu Pra Ser patrão.

Até então, não achava que toda unanimidade era burra. Mas os deputados estaduais foram unânimes e aprovaram o tal projeto em primeira votação. É por essas, e por outras, que deveria ser obrigatório a todo político eleito que matriculasse seus filhos e filhas na escola pública. Assim, talvez, nosso Ideb fosse pras cabeças.

Costumo dizer que há ritmos para se dançar apenas com o corpo e outros de corpo e alma. Grosso modo, pode-se dizer que o esqueleto dança conforme a música; do andamento mais tenro ao mais frenético. Mas que certas modalidades musicais foram concebidas para separar o corpo da alma e nos fazerem voltar à selvageria – ah! –, isso foram. Lembra aí que havia um hit fazendo metalinguagem disso? Por quase 4 minutos, Mc não-sei-das-quantas ia da velocidade 1 à 5, quando os corpos alcançavam um frenesi ou coisa parecida. Como qualificou o pensador italiano Umberto Eco, é a chamada música gastronômica; feita para ser celeremente consumida, de preferência sentado em uma privada: entra pelos ouvidos e vai descendo rapidamente até sair pelo gosto de cada um.

Prefiro a velha e boa MPB, que tem letra e melodia e pode ser escutada pela eternidade. Talvez por isso, a indústria fonográfica – quem não te conhece é que te compra! – me deteste, pois não sinto necessidade de consumir esses produtos de estação que vem colocando nas prateleiras: remasterizações (série Perfil, por exemplo) de qualidade duvidosa cuja propaganda faz os incautos crerem se tratar de gravações inéditas.

Quanto ao Funk ser um movimento cultural e musical de caráter popular, não sei dizer. Quem sabe nos EUA? Lembrei-me agora que os conceitos de cultura e de música já foram pro brejo com corda e tudo. Num país onde o Sarney e o Collor são imortais de academias de letras; os Dj’s se dizem músicos; um microfone da Cidade da Música no Rio de Janeiro custa R$ 15.586,80 aos cofres públicos; o MST continua lutando por terra e sacrificando pés de laranja alheios; os professores ganham menos que os policiais; os juízes mandam pro semiaberto os fujões perigosos e o Congresso Nacional acha que precisamos de mais 10 mil vereadores... Deixa eu me calar, pois em boca fechada não entra mosquito, até porque aqui, no bairro onde moro, eles estão passando das medidas. E... além disso, gosto não se discute mesmo, lamenta-se.


Publicada na Revista CAE - novembro de 2009.