Quando eu era menino pequeno lá em Retiro do
Muriaé, quase ninguém pronunciava alguns dos nomes de SATANÁS. Além do medo que
nos fora impingido pela cultura judaico-cristã de atrair o CAPETA, os
designativos de SATÃ eram todos considerados palavrões que só meninos mal-educados,
ou gente perdida, ousavam xingar. As pessoas mais velhas, ao precisarem falar o
nome do BICHO RUIM, usavam o qualificativo “inimigo”. Então, diziam que o INIMIGO
tentou fulano de tal, por isso ele matara sicrano ou beltrano, ou roubara
alguma coisa, ou teria tido um comportamento inconveniente qualquer. E depois,
esconjuravam-se e persignavam-se como para se livrarem de ter atraído o TINHOSO
ao pensarem nele ou ao proferirem um de seus apelidos.
O povo atribuía à tentação do PRÍNCIPE DAS
TREVAS toda atitude fora dos padrões sociais. Padrões ditados e escritos, e
vigiados, e cuidados para que nunca evoluíssem. Nos casos mais graves, de
repetidas safadezas, dizia-se que o indivíduo estava endemoninhado, possuído
por LÚCIFER – o anjo decaído –; só um exorcista poderia dar jeito a isso. Fosse
hoje, estaríamos num mato sem cachorro porque exorcista ficou igual a trocador
de ônibus: a gente não encontra um.
Mas busquemos compreender em que patamar se davam
essas relações de lugar dos sujeitos na pirâmide. Tratava-se de uma sociedade
majoritariamente “convertida”, convencida por herança. Era a crença romântica
de que toda criatura nasce uma tabula rasa,
que o batismo a torna melhor e a conversão, definitivamente, a faz santa. Uma
forma de eximir a todos da responsabilidade por seus próprios atos, tantos os
“bons” quanto os “maus”, atribuindo-os a alguma inexorável força exógena, alienígena,
doutro mundo.
Em alguma monta eu me sentia parte de uma
legião estrangeira. É que nasci canhoto! Escrevo com a mão esquerda. Diziam que
eu era SINISTRO. Uma irmã mais velha – Rita de Cássia – foi perseguida na
escola por não ser destra. A professora queria amarrar sua mão esquerda pra que
“endireitasse”. Coitada! A professora, claro, não sabia que o lápis seria
substituído pelo teclado, em razão de que nada é definitivo, nem suas crenças. Eu
tive “problema de comportamento” aos 8 anos de idade porque queria debater o
conceito, vigente à época, de substantivo concreto e abstrato com base nos
exemplos parcos e muito rasteiros que a minha professora dava. Isso, contudo, é
pra um outro texto.
Mesmo hoje, quando a ciência avança na
compreensão da natureza humana e da organização social, insistem em espaço para
reduzir tudo à eterna disputa entre o DEUS e o CÃO, entre o BEM e o MAL. Parece
aquela angustiante dicotomia ceciliana de ter de viver “escolhendo o dia
inteiro” entre isto OU aquilo.
Em países como o Brasil, sob colonização de base
cristã, o comportamento social é fortemente mítico. Entretanto, tenho observado
a expulsão do CAPETA do imaginário das pessoas. Encontra-se um montão de gente
que não acredita na existência dele. O Talzinho já não é visto com a corriqueira
frequência com que diziam que ele aparecia e se apossava de pessoas antes do
celular com câmera de vídeo. Dizem até as más línguas que tem batido ponto em
uma ou outra igreja de orientação neopentecostal, donde sempre acaba
escorraçado e expulso da montaria. Tem mesmo razão o Zeca Baleiro ao apregoar
que o CRAMUNHÃO é o cara mais underground
que existe. Tenho notícias de que o trabalho do COISA RUIM está em processo de
terceirização. Começo a considerar esta realidade, pois temos visto uma legião
de simulacros em substituição a BELZEBU. Eles habitam sobretudo os espaços de
poder terreno como as casas do Congresso Nacional, as altas Coortes da Justiça
e, ultimamente os Palácios do Planalto, do Alvorada, do Jaburu (eles ficam
mudando de lugar, conforme fazem também os habitués)
e seus similares estaduais e municipais.
Roberto Campos, por quem nunca nutri
simpatia, dizia que o brasileiro é a mistura da cultura do privilégio, com a da
magia, com a da indolência. Vou levar em conta a assertiva no esforço de
colaborar com a compreensão dessa originalidade nacional que leva a grossa
maioria de nós a ter uma percepção opaca da realidade. Opaca porque muitos não
estão entendendo que nosso país não é o centro da disputa entre o DEUS e o PAI
DA MENTIRA (apelido preferido do meu neto Mateus). Assim fosse, o campeonato já
estaria praticamente perdido pela agremiação celeste.
Chegue o ouvido aqui, mais perto: o que está
acontecendo com as administrações municipais novinhas em folha? Qual é o
problema, doido? Ah, deve ser culpa do DIABO.
Publicado na Estilo OFF - junho/2017