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sábado, 8 de abril de 2017

PARA O MUNDO QUE EU QUERO DESCER


Sou do tempo em que aguardávamos a programação musical da festa de maio, no saudoso parque de exposições da CAPIL, como quem espera ver seu nome no topo da lista de aprovados de um concurso. Era um frisson só. Após a divulgação das atrações, vinha a parte mais difícil: escolher entre os shows aquele a que nós iríamos. Pois se a agitação era grande; ao contrário, a grana, curta. E tínhamos que optar por uma ou, no máximo, duas noites. No final dos anos 90, começaram a inserir no roteiro uma apresentação de música religiosa com entrada franca. Daí aos organizadores se renderem de vez à indústria fonográfica e tornar a vida de quem gosta de boa música insuportável não demorou muito. Mas também, nem o parque existe mais... E não foi por castigo de Apolo ou outros deuses de ouvidos sensíveis. O desmantelamento da arena privada tem razões que os observadores da cena social de Itaperuna sabem bem. De todo modo, falo do tempo em que reinava a MPB. Desde a bossa nova, a tropicália e a música sertaneja raiz até a entrada do rock nacional das décadas de 1980, 1990 e 2000 era música o que se tocava e ouvia. Com muita emoção, íamos ver artistas como Elba Ramalho, Belchior, Zé Ramalho, Alcione, Almir Sater e bandas inesquecíveis tipo Capital Inicial, Os Paralamas do Sucesso pra lembrar algumas.
Hoje em dia, não dá pra esperar muita coisa das festas populares aqui em Itaperuna e na vizinhança. São atrações trend, mas descartáveis antes do próximo verão.
Aos cinquenta e tantos anos parece paradoxal que minha paciência tenha encurtando demais. Vou confessar: não suporto música ruim. Beira à antipatia. Quase não saio mais de casa pra barzinhos, por exemplo. A música gastrointestinal tem um efeito devastador no meu humor. Aqui em casa, vez ou outra, pinta um clima de música insana. Mas aí a gente releva, despista ou muda de andar. Mas não posso aguentar um ritmo musical repetitivo carregando uma letra canhestra e monocórdica. Essas coisas que tocam no rádio, na TV e na maioria dos lugares, inclusive itinerantemente nos automóveis a toda garganta, lembram-me o Saramago. O pensador português, nobel de literatura em 1998, sem conhecer a letra dos hit desse momento já dizia que “de degrau em degrau vamos descendo até o grunhido”.
Não que eu seja tão cético. Mas convenhamos! A gritaria chegou às gravadoras e não estou me referindo ao heavy metal. Estranho muito, porque, nos primórdios, somente quem sabia cantar, e cantar muito bem, entrava em estúdio para gravar. Mas, de Xuxa pra cá, o show business virou um vale tudo.
Há algum tempo falo sobre a música gastronômica. Aquela que de per si não tem nenhum valor artístico. É feita apenas para atender às exigências do mercado de consumo dessa sociedade líquida; diríamos, uma fast music. Tem que ser consumida rapidamente. Em 2 ou 3 meses já apodreceu. Dizem que além de impaciente, eu fiquei intolerante, e, também, implicante. Não sei se é tudo isso. Mas vivo a impressão de que há uma involução social de ampla proporção. As letras das músicas deste século, genericamente, são uma constatação do nível de superficialidade a que chegou o debate sobre a vida e a sociedade. Não têm profundidade e se nivelam no raso, por baixo, próximo ao ralo.
Noto que muitas pessoas não param mais para pensar. Parece terem parado de pensar. Não apresentam compreensão do que leem. Não respondem com lógica a uma simples pergunta, não analisam, nem argumentam com alguma coerência. São contra “tudo isso que está aí”, mas incapazes de fazer uma proposição, um plano de intervenção por simples que seja. Entretanto, curtem e compartilham como se fossem máquinas anunciadoras. E ajudam a fazer deste mundo um lugar pior pra se viver. Nesta hora, responderia à provocação de Drummond: Sim! Não foi o automóvel. A vida parou mesmo.

Publicado na OFF/abril 2017