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quinta-feira, 3 de julho de 2008

Aqui a coisa é mais embaixo

Os melhores planos de ratos e homens costumam dar errado.

Robert Burns

Deve ser horrível morar num país como a França. Lá vivem fazendo reformas no instituto da Previdência Social. Por mais que a sociedade francesa tenha alcançado o chamado estado de bem estar social, os governos vêm, sucessivamente, solapando aos poucos os direitos dos trabalhadores. Imagine que agora querem aumentar de 40 para 41 anos o tempo de serviço para requerer a aposentadoria. Além disso, buscam também flexibilizar, a favor das empresas, a tal semana de 35 horas.

A queda de braço entre trabalhadores e governo explica-se obviamente pelas divergências de entendimento do que seja a garantia da sobrevivência de um sistema previdenciário que universalizou o atendimento e cujo cálculo atuarial não previra um avanço tão significativo na expectativa de vida dos indivíduos. Lá vige também um “terrorismo demográfico”, que é como os sindicalistas chamam a alegação do governo de que há sempre mais gente se aposentando para menos trabalhadores ativos.

Ocorre que, além de as pessoas estarem, cada vez mais, vivendo mais - o que significa pagamento de pensões e aposentadorias por mais tempo - elas têm a péssima mania de recorrer a atestados médicos (mesmo sem estar de fato doentes) para conseguirem licenças médicas que as afastem do trabalho e garanta-lhes um razoável período de improdutividade laboral por conta do dinheiro público. Isto sem falar, é claro, de milhares de pessoas que conseguem aposentar-se por invalidez, sem estarem inválidas. Lá existe até mesmo uma máfia branca que comercializa atestados médicos. Eles são comprados segundo solicitação dos fregueses e seus valores variam em razão dos dias de afastamento e do Código Internacional de Doenças. Para entendermos o que significa isto, vamos a um exemplo. A professora, ou o balconista de uma loja, precisa faltar ao serviço na segunda-feira da semana que vem por razões tais como: aniversário da tia, um fim de semana prolongado na praia, ressaca que talvez tenha por um porre programado para o domingo, enfim... basta solicitar ao médico que lhe dê um atestado de uma doença qualquer de que será acometida e que lhe impedirá, miseravelmente, de trabalhar na dita segunda. Aproveitando que o discípulo de Hipócrates está ali mesmo, com a caneta e o papel nas mãos, estica a licença até a terça ou a quarta que não (?) custa nada. Há até mesmo casos notórios de gente que deixou de prestar depoimento em delegacias, em juízos, em CPIs etc. amparada por atestado médico quando era sabido, publicamente, que a única coisa que não existia era algum problema de saúde. Desgraça das desgraças dos gauleses é que para cada 20 ou 30 médicos, cheios de ética e pudor, que não concedem atestados desses aos quais estamos referenciando, há 1 ou 2 que montam verdadeiras lojas de comercialização de folga do trabalho ou de estado de exceção.

O governo, ultimamente, tem reformulado os critérios para licenciamentos de saúde e pressionado os peritos médicos a fim de que ajam com mais rigor na concessão de benefícios previdenciários. Essa política, entretanto, acarretou uma verdadeira guerra entre os peritos e aqueles que aqui no Brasil chamamos de “encostados”. É incrível, mas os peritos passaram a correr risco de morte em seu trabalho. Muitos “encostados” costumam ameaçar, às vezes de arma em punho, o profissional da Previdência que ousa lhes cortar o benefício. Outros peritos, por conta de interesses que não são os públicos, continuam a conceder benefícios mesmo àqueles que não estão doentes. De modo que, todo francês conhece alguém que tenha se aposentado por invalidez sem nunca ter estado inválido e esteja “encostado” sem ser portador de doença alguma, exceto algum mal de caráter. Pasme! Uma amiga francesa contou, por e-mail, que numa cidadezinha do noroeste da França, chamada Bon Jésus, a polícia, após buscas e apreensões em consultórios médicos, hospitais e na Câmara de Vereadores, prendeu uma quadrilha composta de advogados, servidores da própria Previdência e políticos locais que vinha desviando nada mais nada menos que 10 milhões de dinheiros. As investigações avançaram depois que a polícia especializada descobriu que mais de 10% da população da cidade recebia algum benefício previdenciário. Adiantou-me, ainda, que na cidade vizinha de Chemin de la Pierre Noire também há uma outra quadrilha que certa e infelizmente ora vende, ora concede aposentadorias e auxílios-doença em troca de votos.

Chega a ser cômico (na verdade trágico!) que essa francesada que vive a custa da previdência sem o mérito - esse não é o melhor vocábulo, mas que fique assim mesmo, já que estamos falando de avacalhação - da doença e/ou da invalidez é a primeira a “meter o pau” no governo quando esse precisa reformar a Previdência para que ela não quebre de vez. Estão sempre presentes nas passeatas e nos protestos contra as reformas. Parece mesmo que as centrais sindicais de lá - CGT e CFDT (lembre-se de que estamos falando da França) têm um departamento só pra cuidar desses sócios, quero dizer, associados vegetais, desculpe-me, orgânicos, sem os quais não se pode fazer ajuntamento de gente, pois as outras pessoas estão trabalhando para sobreviver e manter de pé o sistema previdenciário.

A coisa é feia por lá. Sarkozy - o marido da Carla Bruni - deverá enfrentar a fúria das centrais entre agosto e setembro para fazer uma reforminha previdencial. Durante o governo Chirac-Raffarin tentou-se privatizar a previdência. Mas, 2 milhões de franceses foram às ruas para protestar e barrar o processo. Tivessem entregado o distinto público aos cuidados da iniciativa privada, talvez agora, como nossos hermanos argentinos, precisassem socorrer os fundos de pensão, estatizando-os, para que não implodam. Isto pode vir a acontecer na América do Norte e na Europa, em geral, onde os fundos estão a ponto de quebrar.

Como brasileiros, podemos ensinar ao “mundo civilizado” que não há Previdência Social que resista a esse estado de usurpação de bem público por uma parcela da população que só quer levar vantagem. Lá, como aqui, é preciso pôr muita gente atrás das grades antes de reformar as previdências pública e privada, porque nem eu nem você queremos chegar ao momento do gozo descobrindo que alguém botou a mão e “mexeu no nosso queijo”.



Artigo publicado na revista Estilo OFF- julho/2008.

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