Em casa, quando nos referimos a pessoas que gostam
muito de animais, dizemos que são cachorrentos. De tempos em tempos, tentávamos
nos transformar neste tipo de gente. Tivemos algumas experiências mais ou menos
longas ou curtas. Nem podemos dizer que desistimos definitivamente. Mas, quer
saber? Hoje não trocaríamos a liberdade por algum latido ou miado peludo muito
próximos de nós.
Fui criado numa conurbação como as que viraram os
distritos no processo de urbanização do país nos anos de 1960. Era bastante
comum em toda residência ter cachorros e gatos no quintal. Na casa de meus pais,
além dos gatos – os nossos, os agregados e os visitantes -, também porcos,
galinhas, patos e marrecos meus preferidos, pois via neles algo para além da estimação.
Naquele tempo, não havia os pet shoppings que abundam como farmácias e templos religiosos.
Comprar produtos para cuidar da beleza e da saúde dos animais não era muito corriqueiro.
A coisa era caseira. Comumente caninos e felinos de pequeno porte frequentavam
as penteadeiras das casas em meio a escovas, talcos, perfumes e cremes de suas
donas, ou das nossas mães, irmãs e tias (nesse caso, sorrateiramente). Quando
adoeciam, o diagnóstico era ordinário; o tratamento de rodelas de sabugo de
milho enfiadas num cordão preso ao pescoço a fim de combater a tosse e espantar
a rabugem era o que se tinha. Claro que não combatia e nem espantava nada e
também nenhum mal fazia. A gripe e a sarna iam e vinham quase ao sabor do
acaso.
Incomum também era o comércio desses animais que,
em geral, tinham seus filhotes doados ou então afogados no rio. Mas já se viam
perambulado nas ruas caninos sem teto que para se alimentar viravam as latas de
lixo em busca dos restos e de um apelido que lhes designasse o pedigree. Fosse
agora, já não os alcunhariam viralatas, mas rasgassacos. Os felinos
domesticados sempre foram mais discretos e sutis. Afinal, uma refeição possível
quase sempre cantava dentro das gaiolas penduradas nos pregos das paredes ou
inadvertidamente posta à mesa.
Gosto de observar este fenômeno crescente do cachorrismo.
Às vezes, confundo-o com a sanha da criação de necessidades típica do
capitalismo. Entretanto, vejo que a raça humana tem essa compulsão por relação
animal. A transformação histórica é que me chama muito a atenção. Há franca
evolução do conceito de domesticação. O vínculo está deixando de ser
utilitarista, isto é, uma associação de interesses objetivos do tipo: preciso de
seu papel e em troca dou algo que você necessita para sua sobrevivência.
Caminha-se a passos largos para um novo contrato: a convivência por estimação.
Vejo uma forte razão para essa mudança: o processo
de urbanização extremada. Os que têm hoje a chamada meia idade, viveram a
fenomenologia da cidadanização. Os espaços foram diminuindo. Tudo parecia ficar
cada vez menor pressionado pelo avassalador aumento da densidade demográfica. A
casa, antes ampla e com quintal de bichos e plantas, apartamentalizou-se. E o animal,
que era grande e solto, agora é pequeno e no colo. Outrora domesticado; ora,
estimado.
Os cachorrentos que conheço evoluíram a tal ponto
que já não consideram que seus caninos, felinos e outros sejam animais ou
bichos irracionais. Tratam-nos como se fossem gente mesmo, alguém da família,
creem em sua inteligência e desempenho intelectual, exaltam sua sensibilidade e
fidelidade, exortam seu paladar refinado, respeitam sua vontade e opinião
manifesta, dividem seu tarja preta com eles, e sentam-se à mesa em família. E
mais: os cachogatorrentos viraram uma rede grande, ativa e forte de proteção
dos interesses e necessidades dos animais de todas as espécies. Fico
impressionado de ver como se agregam para socorrer algum animalzinho ferido,
doente, sem moradia. São bravos denunciadores de maus tratos que ainda vitimam
muitos bichos.
Mas, aqui em casa... dá até urticária pensar num
cãozinho se refestelando no lençol. Nem podemos imaginar uma ferinha balançando
a pelagem próxima à mesa do café ou estirada no sofá afiando as garras na trama
do tecido. Não! Aqui em casa, não! Somente eu e Elâine: como gato... e gata. De
toda forma, admiramos os amigos que não trocaram seu cachorro por uma criança
pobre: adotaram os dois!
Publicado na OFF - novembro/2015
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