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sábado, 7 de novembro de 2015

RELAÇÃO ANIMAL

Em casa, quando nos referimos a pessoas que gostam muito de animais, dizemos que são cachorrentos. De tempos em tempos, tentávamos nos transformar neste tipo de gente. Tivemos algumas experiências mais ou menos longas ou curtas. Nem podemos dizer que desistimos definitivamente. Mas, quer saber? Hoje não trocaríamos a liberdade por algum latido ou miado peludo muito próximos de nós.
Fui criado numa conurbação como as que viraram os distritos no processo de urbanização do país nos anos de 1960. Era bastante comum em toda residência ter cachorros e gatos no quintal. Na casa de meus pais, além dos gatos – os nossos, os agregados e os visitantes -, também porcos, galinhas, patos e marrecos meus preferidos, pois via neles algo para além da estimação.
Naquele tempo, não havia os pet shoppings que abundam como farmácias e templos religiosos. Comprar produtos para cuidar da beleza e da saúde dos animais não era muito corriqueiro. A coisa era caseira. Comumente caninos e felinos de pequeno porte frequentavam as penteadeiras das casas em meio a escovas, talcos, perfumes e cremes de suas donas, ou das nossas mães, irmãs e tias (nesse caso, sorrateiramente). Quando adoeciam, o diagnóstico era ordinário; o tratamento de rodelas de sabugo de milho enfiadas num cordão preso ao pescoço a fim de combater a tosse e espantar a rabugem era o que se tinha. Claro que não combatia e nem espantava nada e também nenhum mal fazia. A gripe e a sarna iam e vinham quase ao sabor do acaso.
Incomum também era o comércio desses animais que, em geral, tinham seus filhotes doados ou então afogados no rio. Mas já se viam perambulado nas ruas caninos sem teto que para se alimentar viravam as latas de lixo em busca dos restos e de um apelido que lhes designasse o pedigree. Fosse agora, já não os alcunhariam viralatas, mas rasgassacos. Os felinos domesticados sempre foram mais discretos e sutis. Afinal, uma refeição possível quase sempre cantava dentro das gaiolas penduradas nos pregos das paredes ou inadvertidamente posta à mesa.
Gosto de observar este fenômeno crescente do cachorrismo. Às vezes, confundo-o com a sanha da criação de necessidades típica do capitalismo. Entretanto, vejo que a raça humana tem essa compulsão por relação animal. A transformação histórica é que me chama muito a atenção. Há franca evolução do conceito de domesticação. O vínculo está deixando de ser utilitarista, isto é, uma associação de interesses objetivos do tipo: preciso de seu papel e em troca dou algo que você necessita para sua sobrevivência. Caminha-se a passos largos para um novo contrato: a convivência por estimação.
Vejo uma forte razão para essa mudança: o processo de urbanização extremada. Os que têm hoje a chamada meia idade, viveram a fenomenologia da cidadanização. Os espaços foram diminuindo. Tudo parecia ficar cada vez menor pressionado pelo avassalador aumento da densidade demográfica. A casa, antes ampla e com quintal de bichos e plantas, apartamentalizou-se. E o animal, que era grande e solto, agora é pequeno e no colo. Outrora domesticado; ora, estimado.
Os cachorrentos que conheço evoluíram a tal ponto que já não consideram que seus caninos, felinos e outros sejam animais ou bichos irracionais. Tratam-nos como se fossem gente mesmo, alguém da família, creem em sua inteligência e desempenho intelectual, exaltam sua sensibilidade e fidelidade, exortam seu paladar refinado, respeitam sua vontade e opinião manifesta, dividem seu tarja preta com eles, e sentam-se à mesa em família. E mais: os cachogatorrentos viraram uma rede grande, ativa e forte de proteção dos interesses e necessidades dos animais de todas as espécies. Fico impressionado de ver como se agregam para socorrer algum animalzinho ferido, doente, sem moradia. São bravos denunciadores de maus tratos que ainda vitimam muitos bichos.

Mas, aqui em casa... dá até urticária pensar num cãozinho se refestelando no lençol. Nem podemos imaginar uma ferinha balançando a pelagem próxima à mesa do café ou estirada no sofá afiando as garras na trama do tecido. Não! Aqui em casa, não! Somente eu e Elâine: como gato... e gata. De toda forma, admiramos os amigos que não trocaram seu cachorro por uma criança pobre: adotaram os dois!

Publicado na OFF - novembro/2015

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