Quase invariavelmente somos
progressistas quando jovens, mas vamo-nos convertendo ao conservadorismo à
medida que os cabelos brancos assomam a raleada cabeleira outrora esvoaçante e
viçosa. Parece que a fé em sonhos de um mundo melhor na qual depositamos todo o nosso empenho e coração; pela qual nos vemos
capazes de uma vida empenhada nos grêmios estudantis; na dedicação aos
diretórios acadêmicos; na obsessão pela organização sindical e de classe; na
política partidária de esquerda e na tenaz determinação por acreditar e buscar
fazer um mundo melhor vai se arrefecendo ou virando pesadelos deixados pelos
caminhos abandonados dia a dia da emoção.
Não conhecemos muito bem os processos
mentais da maturação. Sabemos, entretanto, que deles faz parte a conversão de
um modo de tratar com paixão o sentimento das coisas para uma racionalidade
praticamente econômica de ver a vida. Talvez a decepção política com promessas
não cumpridas, com líderes que “mudaram de lado”... não sei! Fato é que ao
envelhecermos ficamos mais insensíveis, mais egoístas, mais corporativistas.
Parece que colocamos definitivamente o cérebro no lugar do coração.
Não posso de outra maneira compreender a
atitude de significativa parte dos médicos brasileiros ao se posicionar contra
o programa “Mais Médicos” do governo federal. Recordando: a ação governamental
busca captar médicos brasileiros, ou não, que por um salário de R$ 10.000,00
por quarenta horas, mais ajuda de custo, aceitem fazer atendimento básico de
saúde nos chamados grotões ou mesmo na periferia das grandes cidades para
atender as populações mais desassistidas deste país.
Fico estupefato com a notícia de que, em
verdadeiras quadrilhas, médicos se unam para boicotar de maneira sórdida o
programa. É que além de incitarem os mais jovens a irem às ruas carregar
cartazes feitos em gráficas com mensagens contra o programa sob a falsa
alegação de que o governo quer encher o país de médicos estrangeiros, ainda têm
a desfaçatez de sabotar as inscrições pela internet onde se inscrevem e depois
desistem para atrapalhar o cronograma e o recrutamento de médicos estrangeiros
e mesmo brasileiros que desejam fazer parte da ação emergencial. Sem entrar no
mérito de que isso seja um caso para a polícia federal, fico me perguntando
onde foram parar a ética e a moral. Ou menos: em que esquina maldita da vida se
perderam o sentimento de patriotismo, o juramento de Hipócrates e o viço
juvenil de querer melhorar o Brasil e o mundo.
Será que há doutores por esse país de
meu Deus acreditando que se pode fazer reserva de mercado com a saúde alheia,
impedindo a entrada de profissionais estrangeiros? Que os doentes possam esperar
até que a tabela do SUS seja atualizada ou que os Planos de Saúde – verdadeiras
arapucas em sua grande maioria – garantam a execução do rol de procedimentos e eventos
obrigatórios? Claro que os profissionais médicos são estratégicos para as boas
condições de vida da população. Entretanto, são indispensáveis à sociedade na
mesma medida que quaisquer outros. A vida social não pode prescindir dos
esculápios, como não pode dos engenheiros, dos enfermeiros, dos psicólogos, dos
professores – quanto mais desses! –, dos padeiros, dos coveiros, dos lixeiros e
por aí vai. Ainda que haja malucos que pensem diferentemente. Ainda que haja
médicos brigando para ter o monopólio da aplicação de uma simples injeção.
Apavora-me a ideia de viver num país cuja elite tenha a cara de pau de cobrar
benesses sobre benesses por se achar a última seringa não descartável do
estoque. Impor reserva de mercado em tecnologia como o Brasil andou fazendo na
década de 1980 era uma coisinha burra, mas ninguém morreu por conta daquilo.
Bem diferente é entubar a doença dos outros reservando-a como lastro de negociação
salarial e patamar de aristocracia piramidal.
Existem os que gostam muito de cobrar, mas
não querem pagar. São os devotos do “venha a nós tudo; ao vosso reino, nada!” O
Ministério da Educação parece ter colocado o dedo na ferida com o projeto de redesenho
da formação médica no Brasil. A partir de 2015, os discípulos de Hipócrates
terão de estudar mais dois anos e servirem ao povo em residência bem remunerada
no SUS. De novo eles gritam, pois acham que isso é pedir demais. Nesse caso
gosto sempre de perguntar à elite brasileira se é costume entre seus pares
voltar à universidade onde se formaram, sobretudo se pública, para doar um
livro sequer? Já sei! Acham que não têm essa obrigação já que pagam impostos.
Ora, por que se pensa que o governo tem que exorbitar e que para isso pagamos
impostos? E como então se distribuirá a renda que a iniquidade social
concentrou na mão de perdulários que em sua maioria sonega esses mesmos
impostos? Ah, – voltando ao caso médico – quem não negou um recibozinho de consulta ou cobrou um
pouquinho mais caro para fornecê-lo? E deixou de declarar umas coisinhas ali e
outras acolá? E não vendeu um ou outro atestado falso? E não colocou a prótese
mais cara para receber a propina da máfia da indústria farmacêutica e de equipamentos?
E não cometeu um erro médico que a terra cobriu e praticamente ninguém viu? Não
entendo o porquê de certas categorias profissionais acharem que são melhores do
que outras e que precisam enriquecer no primeiro exercício. Além do que, ainda
faltam espelhos em muitas casas e consultórios.
Por favor, não me venham com o discurso
“desculpa de peidorreiro”: _Não há condições adequadas de atendimento! _Não existem
equipamentos! _Laboratórios! Blá, blá, blá. Quem mandou passarem a formação
estudando através de resultados de exames ao invés de aprenderem a tratar de
gente e a se especializarem em pessoas vivas?!
Infelizmente, parece que as
manifestações de rua arrefeceram depois que indivíduos de caras tampadas
resolveram que as aproveitariam para exercitar seu mau costume de estragar o
patrimônio privado e o público, preferencialmente, lançando mão também da
oportunidade para saquear uma loja aqui e outra ali. Como a polícia foi
orientada a fazer vista grossa aos vândalos, o povo do bem foi levado às cordas
tonto com a transformação do sonho em pesadelo. Uma pena! A democracia direta
só tem a perder quando o Estado não pode oferecer segurança aos protestos
legítimos. Mas talvez seja uma paradinha oportuna para muitos lerem os cartazes
que estiveram empunhando.
Publicado na OFF agosto/2013