Definitivamente, a palavra delação entrou no vocabulário do povo
brasileiro e, ao que parece, promete vida longa.

Quanta diferença da delação! Essa confissão moderna e premiada que
aponta apenas os erros e infrações dos outros. O prêmio não é apenas ver o
algoz em maus lençóis. Serve para diminuir ou aliviar de vez a pena de quem
desnuda o crime contra quem o quer esconder. Ou seja: ao dedo duro, os louros e
a amnésia social.
Principalmente quando se trata da formação de bando, quadrilha ou rede,
que tem sido o modus operandi tão
facilitado pelas novas tecnologias, o instituto da delação premiada (elevado a
essa categoria somente na década de 1990), segundo se diz, tem servido à
justiça brasileira no desvendamento de crimes, principalmente, contra o erário
por parte de agentes políticos e de governos. Não há um único dia, desde o
início da chamada Operação Lava Jato, sem que sejamos informados sobre trechos
de delações e também de grampos telefônicos, ilegais ou não, de atores do jet-set nacional.A esse respeito, quando se misturam confissão, delação e espionagem, digo, investigação, é que se descobre que isso é o TODO do sistema de apuração de crimes. E talvez seja este o ponto nevrálgico: a tênue linha divisória entre investigação e espionagem.
No plano internacional, por exemplo, os EUA alegam que as revelações de Edward
Snowden não são sobre espionagem contra governos e grandes corporações, mas
monitoramento investigativo. Ou melhor: um programa de vigilância a favor da
paz mundial. Como diria Confúcio: arranjem a crença, que eu lhes arranjo os
crentes.
Já na Itália, dá-se conta de que as delações prosperaram tanto que sua
influência inspira a Justiça mundo afora. Em troca do perdão judicial, o
“arrependido” Buscetta (o Tommaso) dedurou deus-e-o-mundo da Cosa Nostra. Não digo MÁFIA, pois, aqui,
são tantas e indistintas que o leitor não iria saber se falava sobre a do ISS
paulista, a da merenda escolar, do trabalho escravo, do tráfico de drogas, dos
planos de saúde, de mulheres, de influência, da BRANCA etc. “Deus sabe a força
de um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos”, diria o machadiano
Brás Cubas.
No Brasil, a Justiça já tirou, nem sei quantas vezes, o Whatsapp do ar, já determinou prisão do
vice-presidente do Facebook, mas não
consegue colaboração numa simples investigação de tráfico de drogas. Nesse
campo, parece que as delações recompensadas não prosperam.
Agente secreto, investigador, intercepção telefônica, espionagem,
criptografia, gravação de áudio e/ou vídeo tudo isso me remetia especialmente à
ficção da minha juventude nos anos 70/80, tempo de ler e ver Sherlock, 007,
Mata Hari, Dick Tracy, o brasileiríssimo Ed Mort, Virginia Hall, Rabugento.
Pensei que tudo isso tivesse ficado para trás, naquele tempo em que o máximo de
indiscrição era feita por uma janela, às vezes com um binóculo. As delações
mais os áudios gravados às escondidas, sendo seletivamente postos na imprensa a
cada dia, ainda evocam as estórias de Agatha Christie.
Daí é que me vem nascendo uma preocupação com esses tempos de diga-me o
que postas, curtes e compartilhas que eu dir-te-ei quem és: o registro
indelével da memória guardado pelo serviço de espionagem e invasão de
privacidade da vida alheia em algum super HD planetário. Para simplificar,
sendo itaperunense, chamo de ITC, Inventário de Todas as Coisas. Quando essa
teoria superar meu provincianismo, vou batizar de CT, o Cadastro de Tudo. Não
quero assustar você, mas ele já existe. Os escatologistas dizem que no grande
último dia, essas coisas que fizemos, falamos, escutamos, escrevemos,
compartilhamos, curtimos com KKKK e
pelas quais batemos palmas irão, uma a uma, aparecerem num grande telão para
todos verem.
Por isso, faz tempo que tenho tido um estranho desejo de também fazer
uma delação premiada.
Publicado na OFF - junho/2016