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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

QUANTO VALE A LIBERDADE E QUANTO CUSTA A MORTE

Gosto de revisitar as coisas que escrevo; às vezes para me corrigir, outras para reafirmar minhas crenças e seguir em frente. Ainda outras para fugir da mesmice – acho que é o caso agora – de uma pauta obrigatória na grande imprensa e nas conversas de botequim: as manifestações finalizadas por depredações nas grandes cidades do país. Vamos combinar! A gente já não tem mais saco pra isso.
Certos temas são muito pontuais e, vira e mexe, voltam ao debate social sempre com novas perspectivas. Há os que são datados. Esses, quase inevitavelmente, aparecem sazonalmente nas crônicas do mundo inteiro. É o caso das duas releituras que acabo de fazer acerca dos direitos humanos e sobre a morte.
Daqui a pouco – em dezembro – estaremos comemorando os 65 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mesmo depois de tanto tempo – ou quem sabe exatamente por causa disso – os discursos sobre os Direitos ainda são muito controversos. Costumo dizer que parecem brasa que cada qual puxa pra sua sardinha. Pra muita gente, somente quando defendem sua própria causa ou crenças é que os “direitos” estão direitos. Caso contrário, estão a defender bandidos. Essa é uma contradição pra lá de ordinária com que o senso comum trata a utopia de um mundo mais justo e fraterno.
Rola pela internet um requentado assunto a respeito do “absurdo” de um presidiário ganhar setecentos, oitocentos ou novecentos – a bobagem geralmente tem muitas versões – e tantos reais do governo do Estado (?) e que isso seria um acinte a tanta gente honesta que precisa trabalhar muito para “tirar” um salário mínimo etc., etc. Já tinha ouvido até deputado falando disso na tribuna da câmara federal, mas deputado desinformado, falando asneira não é novidade neste país. O que me deixou bastante preocupado foi ver gente bem intencionada repetindo a galhofa.
Por isso prometi pra mim mesmo que o ano não findaria sem que eu escrevesse, aqui na OFF, duas linhas em relação ao assunto. Acredito profundamente que informação é essencial à inteligência, é ela que alimenta as ideias, que não deixa o alzheimer da ignorância trepar na gente.
Ora, o auxílio-reclusão é um benefício pago pelo INSS aos dependentes do segurado que se encontra preso sob o regime fechado ou semiaberto enquanto durar o encarceramento. Esse benefício surgiu na Lei Orgânica da Previdência Social em 1960 no bojo dos esforços brasileiros de cooperar com a implantação dos ideais da Carta dos Direitos Humanos.
Há um embate direto entre o espírito dos Direitos Humanos e o ressurgimento universal do Individualismo. Além disso, a violência urbana e a falência do nosso sistema prisional têm imprimido um caráter de vingança social à detenção. É urgente refazermos, nessa conjuntura tão desfavorável, o sentido da solidariedade, da cooperação, do respeito às pessoas, da piedade – por que não? – sem o que a sociedade corre o risco de retornar à barbárie e ao totalitarismo.
Em última instância, o auxílio-reclusão é o reconhecimento pela previdência social da condição de contribuinte que o prisioneiro tinha e da cessação de suas possibilidades laborativas remuneradas gerando, portanto, o benefício legal. Aliás, isto é a valorização do trabalho humano sem a mais valia. Somente desinformados ou mal intencionados são capazes de continuar chamando o auxílio de bolsa-bandido. Além do que, já dizia Nélson Rodrigues: “A liberdade é mais importante do que o pão”. Por isso não achamos quem deliberadamente queira renunciar à liberdade para gozar de auxílio-reclusão.
O outro tema é a morte que sempre volta no mês de novembro. Ainda que não queiramos, há um dia para se pensar na morte – nossa e na dos outros. A cultura ocidental nos ensinou a olhar a morte pelo lado de quem fica vivo. Na magistral obra de Machado de Assis, quando Brás Cubas diz que “não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”, o olhar é do defunto que continua “vivinho da silva” para escrever suas memórias. E a ironia machadiana é tanto mais humana quanto mais tenta nos fazer crer transcendental.
Às vezes cotejamos a vida com a morte. E é por isso que podemos cristãmente desejar a morte para alguém que esteja sofrendo de uma doença incurável, ou que não tenha melhor expectativa de vida plena. Alguns mais abusados querem a morte de quem é mau: _Tomara que morra aquele crápula. Outros ainda desejam a própria morte acreditando que ela seja a solução de seus problemas. Também encontramos gente “disposta” a morrer por outra ou em lugar de outra, por uma causa ou em nome de uma crença.
Todos deveriam viver, e bem, até a média de vida da sua comunidade. Isso parece justo. Se não morrêssemos, teríamos de reformar profundamente o sistema previdenciário, o auxílio-reclusão, o tempo de escolaridade, o seguro de vida, o ingresso na maioridade, a idade indicada para certos programas de televisão, o ECA, o Estatuto do Idoso, o instituto da reeleição... essas coisas fugazes.
Particularmente, cunhei uma metáfora – tratada com mais vagar na crônica “Acrobacia da Consumação” encontrada em: http://professorzeluiz.blogspot.com.br/search/label/Finados – para imaginar a morte: uma cambalhota daquelas de 360º, coisa que, quanto mais idade tivermos, menos noção de como vamos sair do outro lado. Talvez por isso, Dercy Gonçalves tenha querido ser sepultada em pé na crença de que a caminhada continua.
Mas insisto: se queremos viver muito e bem, é claro que desejamos bem morrer, pelo menos. Admitamos, ninguém quer apagar a lamparina; mas já que isso acaba ficando inadiável, que seja salutar. Então reaprendamos a dar cambalhotas e a plantar bananeiras, pois acho que morrer é isto: um mergulho, um ver o mundo de ponta-cabeça, ir brincar em outra dimensão.

Publicado na OFF - novembro/2013