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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Elegia 2011: muito herói pra pouco heroísmo

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
Carlos Drummond de Andrade

O bom de morar num país democrático é que se pode falar o que bem entender sobre quaisquer coisas. Aliás, o Supremo Tribunal Federal acaba de proclamar que as “marchas da maconha” não podem ser reprimidas; que, ao contrário, o poder público tem o dever de garantir aos cidadãos o direito de se reunirem. E mais: a polícia deve vigiar para garantir a boa realização de todo tipo de manifestação. Tudo porque está na constituição, nos nossos “direitos e garantias fundamentais”. Portanto, quem quiser discordar precisa começar algum movimento para mudar o artigo 5º (Lembro aos neófitos que os “direitos” constituem Cláusula Pétrea.), principalmente o inciso IV onde está escrito que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Eu não tenho dificuldade nem com uma coisa nem com outra. Afinal, estamos a um passo da liberação do uso da cannabis sativa; eu aguardo ansioso é pelos tempos em que, finalmente, teremos um efetivo repelente de pernilongos que por aqui estão a dar com pau.
Gosto mesmo de observar as transformações da sociedade. Tenho esse sentimento de mundo e vejo com cuidado, por exemplo, a evolução das palavras. Nos últimos tempos, o vocábulo HERÓI ganhou desenfreado uso e abuso por aí. Desde que Cazuza declarou que seus “heróis morreram de overdose” até o surgimento de toda uma categoria de servidores públicos que assim se autoproclamam, passando pela apologia ao império do ócio, da maledicência e do sexo sem compromisso autorizado por Pedro Bial, ao chamar os brothers de “nossos heróis”, a coisa virou ramerrão.
Nos primórdios, a deferência era distribuída com parcimônia. A gente não topava com heróis – e menos ainda com heroínas – pelas ruas fazendo roteiro turístico enfadados da mesmice do Olimpo. Sim, porque a origem do termo é exatamente sua ligação com as divindades. O herói era um semideus ou assim categorizado por ter feito um ato heroico. Depois a gentileza foi sendo distribuída à volonté. E ficou tão banalizada a ponto de ser preciso inventar os super-heróis para que não morresse a idéia de homens mais que humanos, capazes de gestos e comportamentos para além das fraquezas puramente biológicas dos mortais e das crendices estapafúrdias que mantêm a indústria da religião.
Há muito que o espírito heroico jaz, como diria Drummond, mumificado em bronze nalgumas praças das cidades ou recolhido “aos volumes de sinistras bibliotecas”. Sim, porque não se pode mesmo chamar de herói alguém que por dever de ofício faz o que tem de fazer. Ou que, sobretudo, faz mais do que devia e depreda o patrimônio público em nome do espírito de porco, isto é, de corpo.
Ando enjoado com a vulgarização do termo. É herói pra tudo quanto há de bom e de ruim. Para ser politicamente correto, nem se pode mais falar de anti-herói – termo, agora, restrito aos registros literários históricos.
Dias desses me deparei com uma novíssima categoria de “heróis”. Surgiu exatamente no STF, que parece estar na moda. São heróis diametralmente opostos. De um lado o ministro Ayres Brito – elevado à categoria de musa dos homoafetivos – ensinando-nos que “nosso órgão sexual é um plus, um bônus, um regalo da natureza. Não é um ônus, um peso, um estorvo, menos ainda uma reprimenda dos deuses". De outro, o advogado itaperunense Ralph Anzolin que, sob os auspícios da Associação Eduardo Banks, defendeu, na condição de amicus curiae, contra o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Infelizmente não aprendemos nada com sua verborreia mais em gaguez do que em português. Mesmo assim ele virou herói da contraparte quando deveria ser apenas um amigo da corte. Fazer o quê? Esse exemplo não é pra criar apologia disto ou daquilo; é pra nos fazer pensar que o heroísmo tem lá suas vicissitudes.
Houve tempo em que veio o divórcio que antes era desquite e anteriormente o apedrejamento das mulheres. Que venha então a maconha, a eutanásia, a união homoafetiva. Pois, com efeito, se duas pessoas do mesmo sexo querem viver juntas e desfrutar dos direitos que todo indivíduo deve ter, em que isso pode atrapalhar a minha vida ou a sua? À minha, nada. Se isso o incomoda, talvez não ande satisfeito com o seu plus, mocho herói.

Publicada na Estilo OFF junho/2011.