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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Canteiro de moças e velhas

Esses moços pobres moços
Ah! Se soubessem o que eu sei
Lupicínio Rodrigues

Cultivo um canteiro de Zinnia eleganso do outro lado da rua esburaca, da qual a prefeitura não quer nem saber, bem em frente a minha casa e nos fundos de um mal cheiroso abatedouro. São lindas! Nessa época do ano as borboletas completam o quadro vivo que eu acho à Monet. Enquanto me delicio com essa visão de céu, um olho desatento adeja dentro de casa e repara uma “Super Interessante”. A revista estava lá sob o balcão e não pude deixar de ler: “Em 50 anos é possível que ninguém mais morra de velho.” A reportagem dava conta do arsenal de drogas e tecnologia preparado pela ciência que promete nos manter vivos para sempre. Assustei-me. Isso é que é mesmo a vida eterna?
Você já pensou realmente na possibilidade de viver mais uns – quem sabe! – 100 anos? Isso significa atravessar todo o século XXI e ainda uma rebarbinha do próximo. É preciso considerar um montão de coisas a fazer e reconsiderar outro tanto de miudezas. Há gente que passará a escolher mais demoradamente quase tudo: do prato que irá pedir no restaurante até com quem se casará e prometerá viver o resto de sua vida, passando pela roupa (“pro samba que você me convidou”) com que se apresentará na feijoada da Estilo OFF. Namoro de 6 ou 7 anos, com noivado de mais um tanto é fichinha. Aí sim poderemos dizer que temos “uma vida inteira pela frente”. Sobrará ocasião até para os arrependimentos ativos tais quais os passionais, que geralmente vão sendo adiados sine die. Os planos? Todos em longo prazo. Nada será para o próximo ano, mas para o quinquênio, pelo menos. Imagine quanto poderemos abusar das reticências!...
Sabe-se lá, quanta reforma se fará na previdência social para ir adiando a nossa aposentadoria! Ninguém poderá se dispensar aos 60 ou 65 anos; só a classe dos políticos. E seus apaniguados. Eles se aposentarão e continuarão, com seus direitos adquiridos, a trabalhar no negócio, isto é, no serviço público. Assim, nenhum prefeito jovem poderá reclamar de servidores que ganhem mais do que ele. Nem por desconhecimento, nem por descontentamento, nem por inveja e, menos ainda, por falso moralismo.
É claro que estão prometendo que o corpo irá se manterá em forma para toda atividade laboral - e de consumo, lógico -: o uso das roupas da moda; a frequência às academias de ginástica; a ingestão de bombas; vários lazeres que inventarão; férias na Lua, em outros planetas e mais um século de atividade sexual. Aguenta!
Eu não duvido desse “envelhecimento” ativo e aconselho que ninguém o faça. A ciência poooode! Mas fico pensando em como nossos valores, a ética, as crenças pessoais poderão suportar a realidade dinâmica desses tempos cada vez mais novos e surpreendentes. Mesmo acreditando que o mundo está melhorando, e não o contrário, o tal conflito de gerações será uma realidade sempre mais avassaladora. Já pensou nos tataravós criando seus tataranetinhos, presenciando o namoro das crianças; na pensão alimentícia, na pena de reclusão?!...
Não sou bom nessas coisas de conjecturar o futuro. Antes, isso me assusta. Mas ficar vivo para sempre e presenciar a deteriorização das instituições políticas e da administração pública não me parece um bom negócio para gente da minha geração. Nós que já quase nos livramos do estigma de “filhos da ditadura”, quando parecia que as utopias tinham mais força e éramos determinados a construir uma comunidade mais justa e solidária, agora nos tornávamos fósseis vivos do tempo do trema e da língua portuguesa formal e inteligível.
Reparando melhor no canteiro de moças-e-velhas, vejo que as borboletas se alimentam quase que indistintamente das flores jovens e das menos jovens. A beleza, o colorido, a variedade residem nessa esfuziante mistura. Acho que a natureza vive para nos dar lições. Vira e mexe algum mal educado teima em arrancar uma flor e de safanão acaba por roubar a planta da terra. Não de mim, que cuido do jardim como se fosse – e é, porque plantado no que seria a calçada de um terreno baldio – uma coisa pública. O que me assusta nesse projeto humano de vida eterna é que os mandatos eletivos seriam extensos demais... Ainda bem que a gente morre.


Publicada na Estilo OFF em junho/2011.